sábado, 15 de setembro de 2018

Estupros na primeira infância representam 12% dos casos no PI


A série 'Te Interessa' traz como tema da quarta reportagem especial o abuso sexual contra crianças, com foco na primeira infância, correspondente ao período de 0 a 6 anos. O objetivo da série é retratar a realidade apontando as necessidades e desafios a serem enfrentados para alcançar o bem-estar social como forma de auxiliar os eleitores a escolherem candidatos que tenham propostas para ampliar os serviços e mudar o cenário atual.
Em janeiro deste ano, o proprietário e diretor de uma creche-escola localizada no bairro Ilhotas, no Centro-Sul de Teresina, foi preso acusado de estuprar três alunas. As meninas têm 9, 10 e 12 anos, e conforme relatos das vítimas, os estupros ocorriam dentro da sala da direção. Não houve conjunção carnal, mas os atos configuram estupro de vulnerável. Em maio, a escola fechou as portas e em junho o empresário Antônio Monteiro Neto Filho foi condenado a 34 anos de prisão, em sentença proferida pelo juiz Raimundo Holland Moura de Queiroz, da 6ª Vara Criminal de Teresina.
Dados do Serviço de Atenção às Mulheres Vítimas de Violência Sexual (SAMVVIS) apontam que durante o ano de 2017, no Piauí, 547 mulheres foram vítimas de violência sexual. Desse total, um percentual de 78,9% das vítimas eram crianças e adolescentes, sendo 12,2% referentes à primeira infância, de 0 a 5 anos, e na maior parte dos casos os acusados eram pessoas da própria família.
A médica e coordenadora do Samvvis, Dra. Maria Castelo Branco Rocha de Deus, explica que os dados fazem parte de um levantamento que será apresentado em um Congresso Nacional de Ginecologia. “Nós atendemos, em 2017, 547 vítimas e na grande maioria ficou comprovada a agressão sexual, sendo que 78,9% tinham até 15 anos, e na primeira infância foram 12% dos casos. Você imagina essas crianças que não são maduras nem emocionalmente e fisicamente, suportando uma carga de violência, muitas vezes, dentro de casa, porque os principais agressores de crianças são da própria família”, afirmou.
De acordo com a médica, normalmente, este abuso fica cercado de um complô de silêncio, pois este é um ato que envolve medo, vergonha, culpa e desafia tabus culturais (a sexualidade, incluindo a da criança) e aspectos de interdependência. “Muitas vezes essas crianças mudam de comportamento, além de deixar marcas por toda a vida, tendem a se drogar, a se alcoolizar, então é um caminho muito triste para essas crianças e adolescentes. Além do grau de parentesco, muitas vezes essas vítimas são ameaçadas, dificultando ainda mais a denúncia”, acrescentou.
A Dra. Maria Castelo Branco esclareceu que, além das marcas psicológicas, essas vítimas também desenvolvem consequências físicas, como dor pélvica, manchas na perna, casos de vitiligo, condiloma, doenças sexualmente transmissíveis, como herpes, HPV, além de gravidez e até mesmo laceração perineal. “Esses são casos que requerem uma atenção especial da saúde pública, das instituições que acolhem, como Conselho Tutelar, promotorias, delegacias, porque na família nem sempre elas têm esse suporte, porque essa é uma violência silenciosa que dura anos”, enfatiza.
Serviço presta assistência especial às vítimas de violência
O Samvvis é um serviço que funciona desde 2004 na Maternidade Dona Evangelina Rosa e atende mulheres de qualquer idade por uma equipe multiprofissional composta por médicos, assistentes sociais, psicólogos e enfermeiras utilizando uma metodologia abrangente às vítimas e de forma humanizada.
“O exame pericial é solicitado nas delegacias e as vítimas já chegam com o Boletim de Ocorrência e a solicitação do exame, então, esse serviço foi criado para dar assistência à saúde, mas hoje já ampliamos muito essa assistência, tendo em vista que esse exame pericial é feito de uma maneira bem minuciosa. Todas as médicas legistas são ginecologistas, especialmente, se pensarmos que de todas as estatísticas que produzimos, cerca de 80% são crianças e adolescentes e elas se sentem em um ambiente mais acolhedor, com escuta especializada, atendimento psicológico e sendo um serviço de referência”, disse a coordenadora do Samvvis, Dra. Maria Castelo Branco.
O Piauí dispõe, atualmente, de nove Samvvis, que ficam localizados nos municípios de Teresina, Parnaíba, Picos, Floriano, Bom Jesus, Campo Maior, São Raimundo Nonato e Corrente. Na capital, o serviço funciona na Maternidade Dona Evangelina Rosa, sendo oferecido para mulheres. No interior do Estado, as unidades do serviço já fazem o atendimento a homens que sofreram violência sexual. (W.B.)


Coordenadora do Samvvis, Dra. Maria Castelo Branco (Crédito: Leo Vilari)
Coordenadora do Samvvis, Dra. Maria Castelo Branco (Crédito: Leo Vilari)

 Prevenção deve começar na escola
A suspeita de que uma criança possa estar sendo sexualmente abusada deve sempre ser investigada cuidadosamente. Frequentemente, o agressor é um membro da família ou responsável pela criança, alguém que ela conhece, no qual confia e com quem, muitas vezes, tem uma estreita relação afetiva. “Há uma grande necessidade na prevenção da violência e isso deveria ser feito reestruturando as famílias, nas escolas com um olhar atento dos professores sobre a mudança de comportamento, baixo rendimento, agressividade e uma escuta especializada”, defende a coordenadora do Samvvis, Dra. Maria Castelo Branco Rocha de Deus.
Crianças abusadas sexualmente, em especial as menores, não entendem o que de verdade está acontecendo e ficam sem saber como reagir, nem se devem reagir. Em geral, elas fingem ignorar o fato e sofrem por anos, muitas vezes, caladas. E, lamentavelmente, quando o fato é revelado, muitas ainda têm que enfrentar o descrédito da própria família e da sociedade.
A médica que convive com essa realidade diariamente considera a urgência necessidade da criação de medidas preventivas para a preservação da saúde de crianças e adolescente e políticas públicas, além de escolas de tempo integral e de disciplinas de orientação sexual dentro das escolas e uma Ouvidoria reservada.
“As escolas são o caminho mais fácil para ajudar a socorrer essas vítimas e, ao mesmo tempo, prepará-las para identificar o que seria um suposto abuso e de ensinar como denunciar, pois, muitas vezes, a família dessa vítima já está desestruturada, a mãe é analfabeta e dependente financeiramente do abusador, por isso é preciso investir em medidas de proteção”, diz.
Os casos de estupro de vulnerável registraram um aumento nas estatísticas desde 2004 no Piauí, mas para a médica, isso ocorre devido à mídia que tem noticiado os casos de maior repercussão, o que acaba fazendo com que aumente o número de denúncias. “Quando ocorre um caso como aquele de Castelo do Piauí, muitas meninas criam coragem e vão denunciar, mesmo que a ocorrência tenha sido há um ano, já que o crime de estupro não prescreve, então não é porque aumentou a violência, mas aumentou, sim, a denúncia, por conta da insistência da mídia em destacar a violência contra a mulher”, finaliza. (W.B.)
Bebê de dois meses é vítima de estupro em Teresina
A juíza Maria Luíza de Moura, titular da 1ª Vara da Infância e Adolescência, afirma que os casos de violência sexual que chegam ao Juizado têm como vítimas crianças a partir de 2 meses, até adolescentes de 17 anos. Atualmente, existem mais de 5 mil processos no Juizado, mas não é possível mensurar a quantidade específica dos crimes sexuais. “Podemos afirmar que a maioria dos processos são de violência sexual. O principal abusador é quem deveria cuidar, que é o pai, padrasto, primo. Recentemente, julgamos um caso de uma criança de dois meses de vida, que o pai cometeu o estupro com o dedo. Esse caso ocorreu aqui mesmo na capital”, afirmou.



Juíza Maria Luíza de Moura, (Crédito: Leo Vilari)


Responsável pela proteção dessa vítima, a juíza esclarece que assim que recebe o caso, a vítima é levada para realizar o exame pericial, é feito todo o acompanhamento médico, em seguida, a ocorrência é encaminhada para uma delegacia de polícia para apurar o crime. Depois disso, é feito o acolhimento dessa criança. ”Infelizmente, na maioria dos casos, a mãe nunca acredita na história da filha ou do filho, prefere acreditar no marido ou companheiro, e muitas vezes o juiz é obrigado a retirar a vítima da sua própria casa, onde já está abusada, para ser levada a um abrigo, e isso é muito triste”, acrescentou.
Ainda de acordo com a juíza Maria Luíza de Moura, essa criança ou adolescente é acompanhada por uma equipe interdisciplinar formada por assistentes sociais, educadores e psicólogos, que são os profissionais que vão realizar um levantamento da vida daquela família e constatar quando o crime ocorreu.
“A criança sempre sinaliza quando está sendo violentada, ou porque fica muito triste, se recolhe, ela pede socorro por sinais e a mãe não percebe, portanto, quem presencia ou tem alguma suspeita de que a criança está sendo vítima de violência sexual, pode denunciar através do Disque 100, no Conselho Tutelar, delegacias especializadas, Ministério Público, juizados especiais e diversos outros mecanismos, até mesmo através de denúncias anônimas”, explica. (W.B.)
Infância e juventude não são tratadas com prioridade
Assim que a denúncia chega ao conhecimento da Justiça é concedida uma liminar suspendendo o poder família, e, caso fiquem comprovadas as agressões, essa criança pode ser destituída do poder familiar e passa a viver em abrigos. “Existe hoje a audiência de custódia, que é um projeto feito para proteger presos, enquanto isso, quantos projetos existem para defender as vítimas? Nós temos aqui uma Vara para defender crianças e adolescentes vítimas de violência sexual, mas que não é uma Vara específica, e sim agregada a uma outra Vara criminal. Quer dizer, não existe um tratamento especial como deveria ser, porque infância e juventude têm assegurados na Constituição Federal e no ECA como prioridade absoluta, mas se a Vara não é específica, não é prioridade”, avalia.
Para a juíza, é preciso despertar para essas questões e cobrar das autoridades a responsabilidade maior de atenção, cuidado e proteção dessas vítimas. Ela cita que na 1ª Vara da Infância e Adolescência, por exemplo, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) fez um estudo a nível nacional e descobriu que crianças e adolescentes que vivem em abrigos precisavam ser acompanhadas de perto e criou uma resolução recomendando a todos os tribunais que os juízes e sua equipe fossem deslocados semestralmente nos meses de abril e outubro para fiscalizações e audiências de adoção.
“Nós sempre fizemos isso, mas agora modificaram a lei para uma frequência trimestral, ou seja, dobraram os mutirões, mas não dobraram a equipe, então não temos como acompanhar a situação dos abrigos e continuar as atividades do fórum. A infância e juventude acabam não sendo prioridade, por isso, porque a gente é tratado como se fosse uma Vara comum”, pontuou. (W.B.)
Violência sexual contra crianças aumenta 83% no país
O Ministério da Saúde divulgou um boletim epidemiológico, que mostra que houve um aumento de 83% nas notificações de violência sexual contra crianças e adolescentes em 2017. Os dados apontam que do total de 184.524 casos, 31,5% são contra crianças e 45% contra adolescentes. Vale ressaltar que, para o Ministério da Saúde, são considerados violência sexual os casos de assédio, pornografia infantil, estupro e exploração sexual. Segundo os dados divulgados, o tipo mais notificado de violência sofrida por crianças e adolescentes é o estupro.
Tão alarmante quanto o número de jovens violentados é a vulnerabilidade dos pequenos: o maior número de casos com crianças foi registrado na faixa entre 1 e 5 anos de idade e, com adolescentes, entre 10 e 14 anos. Meninas representam um número muito maior entre as vítimas (74,2% entre crianças), mas meninos também são vítimas de violência sexual.
Segundo a análise feita pelo Ministério da Saúde, esses números reforçam os efeitos do machismo na sociedade brasileira e colocam ainda mais em evidência a urgente necessidade de problematizar o assunto. “Os indivíduos do sexo masculino foram apontados como os principais autores das violências sexuais contra crianças e adolescentes. Diante disso, faz-se necessário problematizar essa situação, considerando que esse maior envolvimento como perpetradores das violências sexuais contra estes grupos pode ser reflexo da afirmação de uma identidade masculina hegemônica, marcada pelo uso da força, provas de virilidade e exercício de poder sobre outros corpos”, diz o texto do boletim. (W.B.)

Fonte: MeioNorte

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