Pedro Paulo
Tavares de Oliveira
(*)
Muito já se
disse a respeito dos atrativos da Cachoeira da Taboca, essa admirável sequência
de quedas d’água do Rio Parnaíba, localizada a cerca de 80km do município de
Gilbués, extremo sul do Piauí. Mas quem vai lá — e quem ainda não foi deve ir —
volta convicto de que a beleza propalada é bem superior à contada pelos
visitantes anteriores.
Uma plaquinha de
madeira na altura do km 32 indica a entrada à esquerda da BR-235, que liga Gilbués
a Santa Filomena, na divisa com o Maranhão, primeiro município piauiense rio
abaixo, ao longo da extensa fronteira demarcada pelo curso d’água entre os dois
estados. Na margem oposta está a cidade de Alto Parnaíba. Saindo do asfalto, o
percurso de 55km até a Taboca é lento por conta dos bancos de areia, logo
vencidos em cerca de duas horas pela Dengosa, brava camionete guiada por meu
irmão Oliveira, acompanhado pelos copilotos Carlim de Jacó e seu filho Enzo,
Antonio de Pádua (“Porrim”), Alan Glaucio e eu.
No célere
desaguar a caminho do mar, o Rio Parnaíba percorre cerca de 1.400 km desde sua
nascente nas franjas da Serra das Mangabeiras, município de Barreiras do Piauí.
Quando o rio alcança a foz, em Luís Correia, forma o maior delta em mar aberto
das Américas. Noutra aventura há pelo menos dez anos, estive no Parque Nacional
das Nascentes, criado em 2002, com parte desses obstinados companheiros. Fomos
até o marco fincado pelo Exército na época da demarcação. Ali o Parnaíba começa
a tomar sua forma, a partir dos rios Água Quente, Curriola e Lontra.
Felizmente, na aventura de agora não sofremos como daquela vez, quando
permanecemos três dias com o carro emperrado em plena nascente do rio. Mas
aquela é outra história.
Na vegetação
quase rasteira predominam o coco catolé e os cajueiros, bastante floridos agora
neste mês de agosto. Entre um brejo e outro, sucedem-se as localidades de
Vereda Comprida, Cachoeira e Conceição dos Oliveiras. Nesta última é
recomendável uma parada para conversar com os moradores e saber das condições
da estrada, cerca de 30 km dali adiante. Além de profundos conhecedores da
região, eles são exímios pescadores.
O mais indicado
é Rubens Reis Brito. Conversamos na varanda de sua casa, ao lado do amplo pátio
da igreja devotada a Nossa Senhora Santana, com festejo celebrado entre 17 e 26
de julho. Ele não pôde seguir conosco
porque precisava concluir a colheita de mandioca plantada ali mesmo nas
cercanias da casa. Mas seu filho Natanael juntou-se à nossa caravana e se
portou muito bem. Sem medo da forte correnteza, ele jogou em várias direções a
tarrafa recentemente furada por um valente surubim. Mas naquele dia o rio não
estava pra peixe.
Poluição — Da rede de
nosso pescador saíram apenas alguns piaus — assados na brasa lá mesmo — e umas
piabas chamadas de “regaludas” por Natanael. Ex-Flamengo, hoje santista, ele
confessa que saiu da nação rubro-negra por não suportar mais as críticas dos
torcedores quando o time perde. “Então, o time só presta quando ganha? No
Santos não tem isso”, admite satisfeito com sua nova paixão futebolística.
Em frente à casa
de Rubens, latinhas vazias de cerveja e até um frasco da novíssima Beck’s
poluem o terreno ao pé de um orelhão desativado, cercado de bodes raçados que
ali babujavam um ralo capim. “Aí vai ser um ponto de internet. Rogerim vem
instalar no próximo mês”, avisa Natanael, revelando a expectativa para usar seu
celular, que funciona precariamente depois de ter caído nas águas da Taboca. O
descaso com aquele paraíso é visível em mais latinhas na margem do rio e até uma
cadeira de ferro abandonada em meio à vegetação.
Rogério Barros
Batista faz o maior sucesso com a instalação de placas solares na região, por
conta própria. O sinal da internet é mais esperado que a construção de um posto
de saúde no local, promessa antiga dos políticos. Além de sua casa, no vizinho
Barro Alto, Rogério já instalou placas em praticamente toda região conhecida
como Beira do Rio, formada pelas localidades de Boqueirão dos Felipes, Lagoa
Arcada, São José, Brejo do Miguel, Brejo da Porta, Capivara, Cedro, Caraíbas,
Lagoa dos Martins, Brejo da Onça, Grota Feia, entre outras.
Rio Uruçuí — Vendo a pequena
aglomeração — mas usávamos máscaras — aproximou-se nosso parente Nicão, vizinho
de Rubens. Veio atraído pelo cheiro — ou melhor, perfume — da nossa única
garrafa de Vale Verde. Curioso, depois de uma chambrecada de dois dedos — entre
o mindinho e o indicador — do nosso “uísque de Minas”, ele perguntou:
— Mas que
cachaça boa é essa, Oliveira?
Meu mano, que já
havia queimado a presa, disse-lhe brincando que a cachaça era do norte chuvoso
de Minas Gerais, a única região do Brasil produtora da raça de gado “Panetone”,
segundo a definição de nosso outro irmão, o Ribinha Chumbo-Quente.
Após esses dois
dedos de prosa, seguimos viagem. O Rio Uruçuí Vermelho havia ficado antes da
Conceição, ainda com um considerável volume de água para esta época de seca.
Mais um brejo de águas cristalinas e começamos a ouvir o belo cantar das
corredeiras. “Onde tem buriti, tem água”, disse Carlim de Jacó. De fato, lá
estavam os gigantes buritizais dos dois lados da estrada, muitos deles prestes
a cair devido à ação de um recente e criminoso incêndio, embora seja um costume
antigo na região.
Como se não
bastasse, as proximidades da cachoeira estão cercadas para criação de gado. O
barro, preto por natureza, fica mais preto ainda devido ao estrago provocado
pelas queimadas. É o caso de registrar esta expressão anônima: “Quando o homem
toma banho em um rio, nem o homem é o mesmo homem, nem o rio é o mesmo rio”. O
homem, certamente, por se julgar mais limpo de suas impurezas corporais e
espirituais. E o rio, sem dúvida, mais sujo por essas mesmas impurezas humanas.
Esperteza de
Enzo
— Essa nota de tristeza logo é superada pelo espetáculo das águas de tonalidade
azul e verde da Cachoeira da Taboca. Lembram o mar de Fortaleza ou de Maceió. Inebriante.
A paleta de cores tem ainda um tom de amarelo, no centro do rio, quase uma
ilha, reflexo da areia daquele trecho raso, cercado de fortes correntezas. A
calmaria daquele ponto permite ao banhista fixar cadeiras e mesas na areia.
Ali, até o
pequeno Enzo, de 9 anos, tibungou com segurança. Esperto, da Conceição até a
cachoeira, de olho no odômetro do carro, ele anunciava os quilômetros restantes.
“Já andamos 28 quilômetros. 26, 25, 24, 23...”. Recordando uma brincadeira do
meu tempo de menino em Gilbués, depois de uma cachuleta e petelecos nele, bati em meu peito, depois no dele e disse
assim: “Peito de homem, titela de galinha, eu bato na sua e tu não bate na
minha”. Pronto, o cara gravou instantaneamente.
Com saudade da
“minha infância querida que os anos não trazem mais”, como tão bem cantou nosso
Casimiro de Abreu no poema Oito anos, saquei essa outra para lembrar da velha
fórmula infantil de contar de um até dez: “Uma, duna, catuna, catuné, reverem,
temtem, gurupi, gurupá, conta bem, são dez”. Ele titubeou um pouco para
repetir, mas no dia seguinte à noite em Monte Alegre, fazendo piruetas com sua
bicicleta em torno da Praça do Psiu, Enzo repetiu a fórmula assim que me viu e
ainda zombou de mim, dizendo que “Monte Alegre é de açúcar, mas Gilbués é de
sal” . Tentei vingar-me e perguntei a ele:
— Enzo, quanto
você pagou?
— Pra quê? —
respondeu ele, inocentemente.
— Pra nascer
feio assim — ferrei.
— E por acaso eu
tô lhe oferecendo boniteza? — retrucou
ele, na lata. Dei-me por vencido.
Água e mais água — Sem sugerir
outra nota de tristeza, o volume d’água da Taboca é suficiente para uma usina
hidrelétrica. Como, aliás, já existe quilômetros abaixo: a Barragem de Boa
Esperança, no trecho do Parnaíba em Guadalupe, município também do Piauí. O
potente volume d’água da Taboca fortalece-se com o fluxo de mais líquido vindo
de um brejão que desemboca naquele ponto do rio para formar duas cachoeiras
paralelas, logo abaixo, na margem do Maranhão.
Trata-se do
Brejo da Taboca, tributário do Parnaíba, cujo nome vem do povoado homônimo
situado a cerca de 30 quilômetros Maranhão adentro. Com todo respeito ao charme
da Cachoeira de Santa Luzia, mais próxima de Gilbués, somente essas duas
cachoeiras superam em muito seu espelho d’água. Sem falsa modéstia, elas são
nossas réplicas das Cachoeiras Gêmeas do rio Itapecuru, em Carolina, cidade do
Maranhão.
O doce correr
das águas da Taboca acompanha o viajante na volta e por muito tempo. Tem razão José
Reis de Castro (“Seu Zequinha”, 72 anos), um dos mais antigos moradores da
Conceição dos Oliveiras. Como fomos num bate-e-volta, encontramos com ele à
tardinha, no quintal da casa de Rubens. “O barulho da Taboca chegava até aqui. E
ela era muito mais alta do que é hoje. Com o tempo, aquelas pedras da margem se
desgarraram da cachoeira”, revela Seu Zequinha. Dona Elana Mendes Brito, esposa
de Rubens, confirma o relato de seu Zequinha: “A história é essa mesma. Pode
perguntar a qualquer morador daqui”.
“Pai, me ensina
a olhar”
— Ali nos despedimos deles, mas ainda houve tempo para degustar um frito gentilmente
oferecido por Elana e que retribuímos com parte da carne levada por nós, da
qual não comemos nem a metade. O agradável aroma de um cesto de açafrão, que
Elana levaria ao ralo, aguçou o apetite pela farofa e pelo restinho da Vale Verde
que levamos para “derrubar os carrapatos”, conforme nosso saudoso Dalton
Barreira. Nesse caso, carrapatos nem tanto, mas o mosquito “polvinha” —
derivado de pólvora, pretinho, quase invisível — e seu parente próximo, o
muruim, e ainda as mutucas, são resistentes a qualquer tipo de repelente.
A melhor
proteção é permanecer o máximo de tempo submerso. Sem esquecer, é claro, o
protetor solar porque lá o “o sol é de derreter catedrais”, na citação do
escritor peruano Mario Vargas Llosa, prêmio Nobel de literatura. Nesse campo
das letras, ainda pedindo ajuda para lembrar do estonteante fervilhar das águas
da Cachoeira da Taboca — somente um dia, que pena — veio-me à mente o seguinte
texto do Livro dos Abraços, de autoria de outro expoente da
intelectualidade latino-americana, o uruguaio Eduardo Galeano:
“Diego não
conhecia o mar. O pai, Santiago Kovakloff, levou-o para que descobrisse o mar.
Viajaram para o sul. Ele, o mar, estava do outro lado das dunas altas,
esperando. Quando o menino e o pai enfim alcançaram aquelas alturas de areia,
depois de muito caminhar, o mar estava na frente de seus olhos. E foi tanta a
imensidão do mar, e tanto seu fulgor, que o menino ficou mudo de beleza. E
quando finalmente conseguiu falar, tremendo, gaguejando, pediu ao pai:
— Pai, me ensina a olhar!
(*) Jornalista,
autor dos livros Cavouqueiro (2009), Chegou hoje, quando volta? (2014)
e (Quase) memória da linguagem piauiesa (2015). Coautor do Dicionário
Eletrônico da Imprensa Nacional (2017). No momento, o autor trabalha
na conclusão do Dicionário sentimental de Boqueirão do Garimpo.