segunda-feira, 6 de setembro de 2021

TURISMO: CACHOEIRA DA TABOCA ENCANTA AVENTUREIROS


 

Pedro Paulo Tavares de Oliveira (*)

 

Muito já se disse a respeito dos atrativos da Cachoeira da Taboca, essa admirável sequência de quedas d’água do Rio Parnaíba, localizada a cerca de 80km do município de Gilbués, extremo sul do Piauí. Mas quem vai lá — e quem ainda não foi deve ir — volta convicto de que a beleza propalada é bem superior à contada pelos visitantes anteriores.

 

Uma plaquinha de madeira na altura do km 32 indica a entrada à esquerda da BR-235, que liga Gilbués a Santa Filomena, na divisa com o Maranhão, primeiro município piauiense rio abaixo, ao longo da extensa fronteira demarcada pelo curso d’água entre os dois estados. Na margem oposta está a cidade de Alto Parnaíba. Saindo do asfalto, o percurso de 55km até a Taboca é lento por conta dos bancos de areia, logo vencidos em cerca de duas horas pela Dengosa, brava camionete guiada por meu irmão Oliveira, acompanhado pelos copilotos Carlim de Jacó e seu filho Enzo, Antonio de Pádua (“Porrim”), Alan Glaucio e eu.

 

No célere desaguar a caminho do mar, o Rio Parnaíba percorre cerca de 1.400 km desde sua nascente nas franjas da Serra das Mangabeiras, município de Barreiras do Piauí. Quando o rio alcança a foz, em Luís Correia, forma o maior delta em mar aberto das Américas. Noutra aventura há pelo menos dez anos, estive no Parque Nacional das Nascentes, criado em 2002, com parte desses obstinados companheiros. Fomos até o marco fincado pelo Exército na época da demarcação. Ali o Parnaíba começa a tomar sua forma, a partir dos rios Água Quente, Curriola e Lontra. Felizmente, na aventura de agora não sofremos como daquela vez, quando permanecemos três dias com o carro emperrado em plena nascente do rio. Mas aquela é outra história.  

 

Na vegetação quase rasteira predominam o coco catolé e os cajueiros, bastante floridos agora neste mês de agosto. Entre um brejo e outro, sucedem-se as localidades de Vereda Comprida, Cachoeira e Conceição dos Oliveiras. Nesta última é recomendável uma parada para conversar com os moradores e saber das condições da estrada, cerca de 30 km dali adiante. Além de profundos conhecedores da região, eles são exímios pescadores.

 

O mais indicado é Rubens Reis Brito. Conversamos na varanda de sua casa, ao lado do amplo pátio da igreja devotada a Nossa Senhora Santana, com festejo celebrado entre 17 e 26 de julho.  Ele não pôde seguir conosco porque precisava concluir a colheita de mandioca plantada ali mesmo nas cercanias da casa. Mas seu filho Natanael juntou-se à nossa caravana e se portou muito bem. Sem medo da forte correnteza, ele jogou em várias direções a tarrafa recentemente furada por um valente surubim. Mas naquele dia o rio não estava pra peixe. 


 

Poluição — Da rede de nosso pescador saíram apenas alguns piaus — assados na brasa lá mesmo — e umas piabas chamadas de “regaludas” por Natanael. Ex-Flamengo, hoje santista, ele confessa que saiu da nação rubro-negra por não suportar mais as críticas dos torcedores quando o time perde. “Então, o time só presta quando ganha? No Santos não tem isso”, admite satisfeito com sua nova paixão futebolística.

 

Em frente à casa de Rubens, latinhas vazias de cerveja e até um frasco da novíssima Beck’s poluem o terreno ao pé de um orelhão desativado, cercado de bodes raçados que ali babujavam um ralo capim. “Aí vai ser um ponto de internet. Rogerim vem instalar no próximo mês”, avisa Natanael, revelando a expectativa para usar seu celular, que funciona precariamente depois de ter caído nas águas da Taboca. O descaso com aquele paraíso é visível em mais latinhas na margem do rio e até uma cadeira de ferro abandonada em meio à vegetação.

 

Rogério Barros Batista faz o maior sucesso com a instalação de placas solares na região, por conta própria. O sinal da internet é mais esperado que a construção de um posto de saúde no local, promessa antiga dos políticos. Além de sua casa, no vizinho Barro Alto, Rogério já instalou placas em praticamente toda região conhecida como Beira do Rio, formada pelas localidades de Boqueirão dos Felipes, Lagoa Arcada, São José, Brejo do Miguel, Brejo da Porta, Capivara, Cedro, Caraíbas, Lagoa dos Martins, Brejo da Onça, Grota Feia, entre outras.  


 

Rio Uruçuí — Vendo a pequena aglomeração — mas usávamos máscaras — aproximou-se nosso parente Nicão, vizinho de Rubens. Veio atraído pelo cheiro — ou melhor, perfume — da nossa única garrafa de Vale Verde. Curioso, depois de uma chambrecada de dois dedos — entre o mindinho e o indicador — do nosso “uísque de Minas”, ele perguntou:

 

— Mas que cachaça boa é essa, Oliveira?

 

Meu mano, que já havia queimado a presa, disse-lhe brincando que a cachaça era do norte chuvoso de Minas Gerais, a única região do Brasil produtora da raça de gado “Panetone”, segundo a definição de nosso outro irmão, o Ribinha Chumbo-Quente.

 

Após esses dois dedos de prosa, seguimos viagem. O Rio Uruçuí Vermelho havia ficado antes da Conceição, ainda com um considerável volume de água para esta época de seca. Mais um brejo de águas cristalinas e começamos a ouvir o belo cantar das corredeiras. “Onde tem buriti, tem água”, disse Carlim de Jacó. De fato, lá estavam os gigantes buritizais dos dois lados da estrada, muitos deles prestes a cair devido à ação de um recente e criminoso incêndio, embora seja um costume antigo na região.

 

Como se não bastasse, as proximidades da cachoeira estão cercadas para criação de gado. O barro, preto por natureza, fica mais preto ainda devido ao estrago provocado pelas queimadas. É o caso de registrar esta expressão anônima: “Quando o homem toma banho em um rio, nem o homem é o mesmo homem, nem o rio é o mesmo rio”. O homem, certamente, por se julgar mais limpo de suas impurezas corporais e espirituais. E o rio, sem dúvida, mais sujo por essas mesmas impurezas humanas.


 

Esperteza de Enzo — Essa nota de tristeza logo é superada pelo espetáculo das águas de tonalidade azul e verde da Cachoeira da Taboca. Lembram o mar de Fortaleza ou de Maceió. Inebriante. A paleta de cores tem ainda um tom de amarelo, no centro do rio, quase uma ilha, reflexo da areia daquele trecho raso, cercado de fortes correntezas. A calmaria daquele ponto permite ao banhista fixar cadeiras e mesas na areia.

 

Ali, até o pequeno Enzo, de 9 anos, tibungou com segurança. Esperto, da Conceição até a cachoeira, de olho no odômetro do carro, ele anunciava os quilômetros restantes. “Já andamos 28 quilômetros. 26, 25, 24, 23...”. Recordando uma brincadeira do meu tempo de menino em Gilbués, depois de uma cachuleta e petelecos nele,  bati em meu peito, depois no dele e disse assim: “Peito de homem, titela de galinha, eu bato na sua e tu não bate na minha”. Pronto, o cara gravou instantaneamente.  

 

Com saudade da “minha infância querida que os anos não trazem mais”, como tão bem cantou nosso Casimiro de Abreu  no poema Oito anos,  saquei essa outra para lembrar da velha fórmula infantil de contar de um até dez: “Uma, duna, catuna, catuné, reverem, temtem, gurupi, gurupá, conta bem, são dez”. Ele titubeou um pouco para repetir, mas no dia seguinte à noite em Monte Alegre, fazendo piruetas com sua bicicleta em torno da Praça do Psiu, Enzo repetiu a fórmula assim que me viu e ainda zombou de mim, dizendo que “Monte Alegre é de açúcar, mas Gilbués é de sal” . Tentei vingar-me e perguntei a ele:

 

— Enzo, quanto você pagou?

— Pra quê? — respondeu ele, inocentemente.

— Pra nascer feio assim — ferrei.

— E por acaso eu tô lhe oferecendo boniteza? —  retrucou ele, na lata. Dei-me por vencido.

 

 

Água e mais água — Sem sugerir outra nota de tristeza, o volume d’água da Taboca é suficiente para uma usina hidrelétrica. Como, aliás, já existe quilômetros abaixo: a Barragem de Boa Esperança, no trecho do Parnaíba em Guadalupe, município também do Piauí. O potente volume d’água da Taboca fortalece-se com o fluxo de mais líquido vindo de um brejão que desemboca naquele ponto do rio para formar duas cachoeiras paralelas, logo abaixo, na margem do Maranhão.

 

Trata-se do Brejo da Taboca, tributário do Parnaíba, cujo nome vem do povoado homônimo situado a cerca de 30 quilômetros Maranhão adentro. Com todo respeito ao charme da Cachoeira de Santa Luzia, mais próxima de Gilbués, somente essas duas cachoeiras superam em muito seu espelho d’água. Sem falsa modéstia, elas são nossas réplicas das Cachoeiras Gêmeas do rio Itapecuru, em Carolina, cidade do Maranhão.

 

O doce correr das águas da Taboca acompanha o viajante na volta e por muito tempo. Tem razão José Reis de Castro (“Seu Zequinha”, 72 anos), um dos mais antigos moradores da Conceição dos Oliveiras. Como fomos num bate-e-volta, encontramos com ele à tardinha, no quintal da casa de Rubens. “O barulho da Taboca chegava até aqui. E ela era muito mais alta do que é hoje. Com o tempo, aquelas pedras da margem se desgarraram da cachoeira”, revela Seu Zequinha. Dona Elana Mendes Brito, esposa de Rubens, confirma o relato de seu Zequinha: “A história é essa mesma. Pode perguntar a qualquer morador daqui”.

 

“Pai, me ensina a olhar” — Ali nos despedimos deles, mas ainda houve tempo para degustar um frito gentilmente oferecido por Elana e que retribuímos com parte da carne levada por nós, da qual não comemos nem a metade. O agradável aroma de um cesto de açafrão, que Elana levaria ao ralo, aguçou o apetite pela farofa e pelo restinho da Vale Verde que levamos para “derrubar os carrapatos”, conforme nosso saudoso Dalton Barreira. Nesse caso, carrapatos nem tanto, mas o mosquito “polvinha” — derivado de pólvora, pretinho, quase invisível — e seu parente próximo, o muruim, e ainda as mutucas, são resistentes a qualquer tipo de repelente.

 

A melhor proteção é permanecer o máximo de tempo submerso. Sem esquecer, é claro, o protetor solar porque lá o “o sol é de derreter catedrais”, na citação do escritor peruano Mario Vargas Llosa, prêmio Nobel de literatura. Nesse campo das letras, ainda pedindo ajuda para lembrar do estonteante fervilhar das águas da Cachoeira da Taboca — somente um dia, que pena — veio-me à mente o seguinte texto do Livro dos Abraços, de autoria de outro expoente da intelectualidade latino-americana, o uruguaio Eduardo Galeano:

 

“Diego não conhecia o mar. O pai, Santiago Kovakloff, levou-o para que descobrisse o mar. Viajaram para o sul. Ele, o mar, estava do outro lado das dunas altas, esperando. Quando o menino e o pai enfim alcançaram aquelas alturas de areia, depois de muito caminhar, o mar estava na frente de seus olhos. E foi tanta a imensidão do mar, e tanto seu fulgor, que o menino ficou mudo de beleza. E quando finalmente conseguiu falar, tremendo, gaguejando, pediu ao pai:

 

 — Pai, me ensina a olhar!

 

(*) Jornalista, autor dos livros Cavouqueiro (2009), Chegou hoje, quando volta? (2014) e (Quase) memória da linguagem piauiesa (2015). Coautor do Dicionário Eletrônico da Imprensa Nacional (2017). No momento, o autor trabalha na conclusão do Dicionário sentimental de Boqueirão do Garimpo.

 

 

 

 

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