Depois de acompanhar um grupo de mais de
3.000 voluntários por mais de duas décadas, pesquisadores dos EUA
relacionaram o consumo dos chamados alimentos ultraprocessados à
incidência de doenças cardiovasculares, como infarto e AVC, e a mortes.
Esses alimentos são aqueles que passam
por intensas transformações industriais, como macarrão instantâneo,
refrigerantes, biscoitos, e salgadinhos de pacote. É comum que esses
alimentos tenham adição de conservantes, corantes, saborizantes e outros
compostos, a fim de aumentar palatabilidade e tempo de prateleira.
Não é de hoje que os profissionais da
saúde e cientistas pesquisam sobre o tema, mas a nova evidência contra
os alimentos ultraprocessados é considerada um passo importante para a
adoção de políticas que melhorem a qualidade da dieta da população.
O novo trabalho, publicado no Journal of
the American College of Cardiology, foi comandado por Filippa Juul, da
Universidade de Nova York. Para ela, um dos caminhos a ser percorrido
pelos americanos é seguir o Brasil, que tem em seu Guia Alimentar para a
População Brasileira diretrizes aclamadas por especialistas de diversos
países.
"O nível de processamento dos alimentos
deve ser abordado no Guia Alimentar para Americanos, como foi feito no
Brasil. Também precisamos tornar os alimentos minimamente processados
saudáveis mais acessíveis e disponíveis para todos, em particular para
as pessoas que têm recursos limitados e vivem em bairros desfavorecidos.
Nesse contexto, é fundamental fortalecer a produção local de
alimentos", diz Juul à reportagem.
Ao longo do período de acompanhamento,
entre 1991 e 2014 (com dados de mortalidade apurados até 2017), houve
251 eventos cardiovasculares graves, como infarto, doença coronariana e
AVC, e 108 mortes por conta deles.
E quanto maior o consumo dos
ultraprocessados, maior o prejuízo. Cada porção (quantidade que varia de
acordo com o alimento) a mais, o risco de um evento desses aumenta 7
pontos percentuais e o de morte em 9 pontos percentuais. Nessa conta, já
estão descontados os impactos de outras variáveis, como consumo
energético diário, IMC, presença de outras doenças, tabagismo e sexo.
O estudo é observacional do tipo
prospectivo. "Ao entrarem na pesquisa, as pessoas estudadas ainda não
possuem a doença e são acompanhadas ao longo dos anos [nesse caso, por
duas décadas], o que permite acompanhar as mudanças na alimentação e o
surgimento das doenças e ocorrência de mortalidade", explica Larissa
Baraldi, pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Alimentação da
Unicamp e que não participou da pesquisa.
"Desse modo, é possível traçar a
associação dieta-doença precisamente, sem ter a dúvida da temporalidade
dos fatos, isto é, se as pessoas teriam modificado a alimentação antes
ou depois de ter a doença", explica Baraldi.
Os cientistas, contudo, ainda se
debruçam sobre os mecanismos que explicariam os malefícios dos
ultraprocessados, além do fato mais evidente de que muitos deles contêm
altos teores de açúcar, sódio e gordura saturada, e baixa quantidade de
proteína, fibras e micronutrientes.
Por exemplo, a estrutura física desses
alimentos e os aditivos e moléculas que se formam durante o preparo
podem influenciar a saciedade, a dinâmica da resposta ao açúcar no
sangue (alterada no diabetes, por exemplo), aumentar a inflamação e
causar danos à microbiota intestinal, relata Juul.
Outra lição do trabalho, afirma Baraldi,
é que não adianta olhar para alimentos (protetores ou de risco) e
nutrientes (gordura, vitaminas etc.) isoladamente para melhorar a saúde e
diminuir a chance de ter doenças cardiovasculares. "A dieta deve ser
estudada em sua totalidade. Nesse sentido a classificação Nova tem
agregado ineditismo aos estudos".
A classificação Nova, que organiza os
alimentos em quatro categorias de processamento (veja infográfico), vem
sendo usada por pesquisadores de várias partes do mundo e foi
desenvolvida pelo Nupens (Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em
Nutrição e Saúde da USP), onde Baraldi também atua como pesquisadora
associada.
Em outro estudo publicado recentemente,
no Journal of the Academy of Nutrition and Dietetics, Baraldi e colegas
estudaram uma base de dados dos EUA (NHANES) e constataram que o consumo
de alimentos ultraprocessados também está ligado a uma menor ingestão
de água, o que pode ter efeitos deletérios na saúde, como pedras nos
rins, piora da função cognitiva, asma induzida pelo exercício físico e
menor resistência ao cansaço.
Ao dividir as pessoas em relação ao
consumo de alimentos ultraprocessados em cinco partes (quintis), foi
possível observar uma diferença do quintil superior para o quintil
inferior de 706 ml no consumo de água: quanto mais ultraprocessados na
dieta, menor o nível de consumo de água propriamente dita e também de
alimentos que contém água, como frutas, legumes e iogurte.
Alimentos ultraprocessados geralmente
contêm pouca água por razões como o uso frequente de ingredientes secos,
como farinha de trigo e amido de milho, e a redução do teor por causa
do processamento, como na secagem e na salga. Com menos água, a
degradação do alimento é freada, a crocância é mantida e o custo de
distribuição, por causa do menor peso, é reduzido.
Além de maior ingestão de água e da
redução na de ultraprocessados, o que falta para as pessoas terem uma
dieta mais saudável é conhecimento nutricional, tempo e habilidade para
cozinhar, e, principalmente, comida saudável mais barata e acessível,
afirmam as cientistas.
"Espero que vejamos grandes mudanças nas
políticas conforme as evidências dos danos dos alimentos
ultraprocessados se acumulam. É encorajador que mais e mais países
estejam tomando medidas para limitar o consumo de alimentos
ultraprocessados, desencorajando seu consumo nas diretrizes dietéticas
nacionais, taxando bebidas açucaradas ou exigindo rótulos nutricionais
na frente da embalagem dos alimentos", afirma Juul.
Outra forma de melhorar a alimentação,
lembra Baraldi, é resgatar padrões alimentares tradicionais, como
estimulado pelo guia brasileiro, além de sempre buscar companhia para as
refeições.
"Cozinhe sua própria comida sempre que
puder e inclua frutas ou vegetais em todas as refeições. Se você comer
fora ou comprar alimentos prontos, certifique-se de que sejam preparados
na hora com alimentos minimamente processados. Evite alimentos
ultraprocessados", diz Filippa Juul.
Folhapress