Depois
de muito planejamento em mesa de bar, finalmente um grupo de foliões do bloco
TIO BEBE DEMAIS adaptou para Gilbués essa iguaria típica da cidade de Campo
Mourão, no Paraná. Como a festa aconteceu na segunda-feira de Carnaval (12/2),
houve até entrudo, para contrariedade de
alguns e divertimento de outros.
Tudo conspirou a favor.
A sombra dos frondosos cajueiros e buritizais do quintal da residência de nosso
primo Henrique Mendes, no Bairro Santo Antônio, na cabeceira do brejo, que
agora ostenta o pomposo nome de Parque Municipal Brejo dos Buritis; A pouca
resistência do solo arenoso, molhado de tanta chuva, facilitou o trabalho de
perfuração do buraco de 1,50m de profundidade por 1,05 de diâmetro, a cargo
de Henriquim de Pedro Onça; O som de
qualidade da sanfona tocada por Claudinho do Acordeon e Amilson Formigão.
E mais: a cerveja
Antártica gelada do Emo’s Bar, servida pelo proprietário Paulim de Zé Vermelho;
O pimentão de sete reais o quilo — haja carestia! —, comprado na banca de Vanin
de Juarez Preto, na feira do pau de Juraci; Os demais ingredientes, comprados
no Armazém São Francisco; O balde de alumínio, gentilmente cedido por Ana Tavares
e Felipe Duailibe; O arroz e o feijão tropeiro preparados pelo anfitrião
Henrique, muito bem assessorado pelos caseiros Wesley e Raísa. E, claro, o melhor carneiro da região, de 18
kg, bem alimentado nos pastos do Arraial, fornecido pelo gaúcho Everson Julio Pulgati. Olha o Sul aí, gente!
Visto e lido assim
nesse relambório, até parece que tudo aconteceu num estalar de dedos. Mas haja
trabalho para encaminhar tudo no dia anterior, domingo (11/2). O carneiro,
nossa principal preocupação, só confirmamos após várias ligações para o celular
de Pulgati. Quando ele finalmente atendeu, garantiu a entrega para o final da
tarde, mas na ligação seguinte perguntou se não poderia entregar na manhã de
segunda-feira. “Negativo dobrado, meu irmão. Na segunda já é para o carneiro
amanhecer no buraco”, disse-lhe meu compadre Jalbas, o mais requisitado
temperador de carneiro de Gilbués. Pouco depois, Pulgati nos encontrou no
Armazém Compre Bem, numa mesa forrada de antártica original buchudinha, a tal
profissa, gentilmente servida pelo proprietário Cleber Lima. Pulgati Garantiu e de fato nos entregou o
carneiro no final da tarde, na casa de meu pai, seu Antonio Cavouqueiro.
Sono
da beleza — Então Jalbas, que é nosso vizinho, começou a
tarefa mais árdua do preparo: cortar com um facão todo o carneiro em pedaços
pequenos. Felizmente, meu irmão Ribinha Chumbo Quente estava por ali e o ajudou
a pinicar a carne. Adiante, Jalbas utilizou apenas um pote pequeno de alho e
sal da Arisco para temperar. Na última missão do dia, nosso chef transferiu a carne ao tacho. Assim
ela marinou durante toda a noite. Enquanto isso, os demais organizadores puxavam
uma modorna, o “sono da beleza” para encarar mais uma noite de folia na lotada
praça Padre Raimundo Dias Negreiros, da vizinha cidade de Monte Alegre.
Ainda no domingo, mais
telefonemas para Henriquim de Pedro Onça, experiente perfurador de cisternas no
garimpo de diamante do Compra Fiado. Homem presumido, já chegou à chácara com
as ferramentas, inclusive uma trena. A pá entrou na terra igual faca na
melancia. Estava pronto o buraco, dentro das dimensões da receita que tínhamos
em mãos.
Ainda precisávamos de
um tacho de cobre ou de alumínio. Bastava ser grande o suficiente para acomodar
a carne, legumes e frutas, preferencialmente daqueles utilizados no tempo de
fornecimento de comida para eleitor na casa do prefeito, em dia de eleição. O
famoso PTBoi.
Alguém lembrou de ter
visto recipientes assim na casa dona Berenice Corado, porém não conseguimos
falar com ela nem com seu filho Fabriciano da Cunha Corado Neto. "Na casa
de Ana de Felipe tem vários", indicou Carlim de Jacó. Batata! Lá fomos e
de lá saímos com o tacho na mão. Mais uma saideira no restaurante de Nilo, o
Vermeim da Praça, enquanto reprisávamos a forma correta dos próximos passos.
Cubagem
— No dia seguinte, segunda-feira, logo cedo os chefs Jalbas e seu irmão Carlim de Jacó retomaram as atividades, já
na casa de Henrique. Antes, arrumaram a lenha com Pedim de Siadita. A receita
recomendava dois metros cúbicos de madeira para queimar durante quatro horas,
se fosse um carneiro de 27 kg. O nosso era menor e, na dúvida sobre a cubagem
correta, quando a lenha alcançou a metade do buraco nossos cozinheiros atearam
fogo e esperaram o braseiro se formar por cerca de três horas.
Ato contínuo, se
readequou a carne no tacho, alternando-se com camadas de ingredientes. Primeiro
uma camada de abobrinha e chuchu picados para soltar bastante água,
sobrepondo-se a salmoura no final. Tomates, cebolas e maçãs inteiros encerraram a arrumação. Além
da tampa, a vedação do tacho se completou com papel alumínio. De maneira que o tacho desceu às 10h40. No
lugar de ganchos, fios amarrados às alças. Palha de bananeira, tábua e areia
vedaram o buraco.
Hora de relaxar e lavar
a goela. Tudo certo como a tampa e a panela. Apesar da alta umidade, uma
garrafa de pinga Boazinha evaporou em instantes, caminho seguido por
incontáveis garrafas geladérrimas de cerveja Antártica transportadas na
motocicleta de Paulim de Zé Vermelho, diretamente do Emo’s Bar. O entrudo
serviu para resgatar essa antiga e polêmica tradição de se molhar as pessoas
durante o Carnaval, mesmo que fosse necessário destelhar casas, como fazia o
delegado Valdemar Palha, em Boqueirão. Este escriba foi duplamente penalizado
na brincadeira. Fui o primeiro a levar um balde d’água sobre meus poucos, mas
heroicos cabelos da resistência. Depois quase perco a namorada, furiosa com o
banho inesperado.
Os
Geniais — Como o amor é lindo e a vida é bela, a farra
continuou. Para nossa sorte, Amilson Formigão passava férias em Gilbués com sua
inseparável sanfona. Mais sorte ainda quando ele se juntou a Claudinho do
Acordeon, amigo recém-chegado da Paraíba. Para atrapalhar mais e ajudar menos,
fizemos um coro em torno dos dois músicos. Estes, sim, dedilharam bonito alguns
clássicos de Luiz Gonzaga e Flávio José. Formigão, aliás, além de ter sido o
primeiro a provar e aprovar o carneiro, ainda nos trouxe boas lembranças do
tempo em que formou a banda “Os Geniais”, composta por ele na bateria, Nonatim
na sanfona, Aldinante e Dadá nos vocais, Zomba no pandeiro. No final das
décadas de 1970 e início de 1980, a banda se dividia em apresentações nos bares
de Gilbués e Monte Alegre, entre eles o Bar Central, Te Contei e Pai Herói. O
maior sucesso foi a música “Badalos”, que não saía da cantiga-de-grilo desse
refrão: “É badalos, badalos, badalôs, é badalos, é badalos, badalôs...”.
Expectativa e apreensão
se misturaram até o momento de retirarmos o tacho. E se o buraco abatesse?
Afinal, a terra estava úmida. E se entrasse fumaça no tacho e tudo virasse um
monte de carne moqueada? E se não houvesse saído água suficiente dos legumes? E
se o carneiro estivesse frio de sal ou o contrário? Nada disso aconteceu. Quatro
horas depois, o carneiro saiu ao ponto. Aprovação unânime. Apesar da dupla
camada de papel alumínio sobre a carne, ainda penetrou um pouco de fumaça no
tacho, deixando as primeiras porções com um leve sabor de defumado. Alguns
comensais se empanturraram, é verdade. Mas nada que comprometesse o conjunto da
obra.
O sucesso do prato
animou os organizadores a planejarem uma segunda edição em agosto, durante o
Festejo de Nossa Senhora Divina Pastora. A intenção é ampliar para o formato de
minifestival, com venda de camisetas e chope. Um dos organizadores, o grupo
Pambulina vislumbra até a possibilidade de uma excursão ao Paraná, afim de
aprimorar o conhecimento culinário no Festival Nacional do Carneiro no Buraco,
realizado a cada mês de julho na cidade de Campo Mourão, quando são preparados
cerca de 183 tachos. Pambulina vem das iniciais dos nomes de seus integrantes:
Pam de Panzilão (Oliveira), bu de Bujão (Carlim de Jacó) e lina de Beijalina
(Jalbas).
(*) – Jornalista
concursado da Imprensa Nacional. Autor dos livros Cavouqueiro, Chegou hoje,
quando volta? e (Quase) memória da
linguagem piauiesa.