terça-feira, 27 de fevereiro de 2018

Gilbués cozinha seu primeiro carneiro no buraco

Carneiro no buraco

Pedro Paulo Tavares de Oliveira (*)





Depois de muito planejamento em mesa de bar, finalmente um grupo de foliões do bloco TIO BEBE DEMAIS adaptou para Gilbués essa iguaria típica da cidade de Campo Mourão, no Paraná. Como a festa aconteceu na segunda-feira de Carnaval (12/2), houve até entrudo, para contrariedade  de alguns e divertimento de outros.
Tudo conspirou a favor. A sombra dos frondosos cajueiros e buritizais do quintal da residência de nosso primo Henrique Mendes, no Bairro Santo Antônio, na cabeceira do brejo, que agora ostenta o pomposo nome de Parque Municipal Brejo dos Buritis; A pouca resistência do solo arenoso, molhado de tanta chuva, facilitou o trabalho de perfuração do buraco de 1,50m de profundidade por 1,05 de diâmetro, a cargo de  Henriquim de Pedro Onça; O som de qualidade da sanfona tocada por Claudinho do Acordeon e  Amilson Formigão. 

E mais: a cerveja Antártica gelada do Emo’s Bar, servida pelo proprietário Paulim de Zé Vermelho; O pimentão de sete reais o quilo — haja carestia! —, comprado na banca de Vanin de Juarez Preto, na feira do pau de Juraci; Os demais ingredientes, comprados no Armazém São Francisco; O balde de alumínio, gentilmente cedido por Ana Tavares e Felipe Duailibe; O arroz e o feijão tropeiro preparados pelo anfitrião Henrique, muito bem assessorado pelos caseiros Wesley e Raísa.   E, claro, o melhor carneiro da região, de 18 kg, bem alimentado nos pastos do Arraial, fornecido pelo gaúcho Everson Julio  Pulgati. Olha o Sul aí, gente!  

Visto e lido assim nesse relambório, até parece que tudo aconteceu num estalar de dedos. Mas haja trabalho para encaminhar tudo no dia anterior, domingo (11/2). O carneiro, nossa principal preocupação, só confirmamos após várias ligações para o celular de Pulgati. Quando ele finalmente atendeu, garantiu a entrega para o final da tarde, mas na ligação seguinte perguntou se não poderia entregar na manhã de segunda-feira. “Negativo dobrado, meu irmão. Na segunda já é para o carneiro amanhecer no buraco”, disse-lhe meu compadre Jalbas, o mais requisitado temperador de carneiro de Gilbués. Pouco depois, Pulgati nos encontrou no Armazém Compre Bem, numa mesa forrada de antártica original buchudinha, a tal profissa, gentilmente servida pelo proprietário Cleber Lima.  Pulgati Garantiu e de fato nos entregou o carneiro no final da tarde, na casa de meu pai, seu Antonio Cavouqueiro.

Sono da beleza — Então Jalbas, que é nosso vizinho, começou a tarefa mais árdua do preparo: cortar com um facão todo o carneiro em pedaços pequenos. Felizmente, meu irmão Ribinha Chumbo Quente estava por ali e o ajudou a pinicar a carne. Adiante, Jalbas utilizou apenas um pote pequeno de alho e sal da Arisco para temperar. Na última missão do dia, nosso chef transferiu a carne ao tacho. Assim ela marinou durante toda a noite. Enquanto isso, os demais organizadores puxavam uma modorna, o “sono da beleza” para encarar mais uma noite de folia na lotada praça Padre Raimundo Dias Negreiros, da vizinha cidade de Monte Alegre.

Ainda no domingo, mais telefonemas para Henriquim de Pedro Onça, experiente perfurador de cisternas no garimpo de diamante do Compra Fiado. Homem presumido, já chegou à chácara com as ferramentas, inclusive uma trena. A pá entrou na terra igual faca na melancia. Estava pronto o buraco, dentro das dimensões da receita que tínhamos em mãos. 

Ainda precisávamos de um tacho de cobre ou de alumínio. Bastava ser grande o suficiente para acomodar a carne, legumes e frutas, preferencialmente daqueles utilizados no tempo de fornecimento de comida para eleitor na casa do prefeito, em dia de eleição. O famoso PTBoi. 

Alguém lembrou de ter visto recipientes assim na casa dona Berenice Corado, porém não conseguimos falar com ela nem com seu filho Fabriciano da Cunha Corado Neto. "Na casa de Ana de Felipe tem vários", indicou Carlim de Jacó. Batata! Lá fomos e de lá saímos com o tacho na mão. Mais uma saideira no restaurante de Nilo, o Vermeim da Praça, enquanto reprisávamos a forma correta dos próximos passos.

Cubagem — No dia seguinte, segunda-feira, logo cedo os chefs Jalbas e seu irmão Carlim de Jacó retomaram as atividades, já na casa de Henrique. Antes, arrumaram a lenha com Pedim de Siadita. A receita recomendava dois metros cúbicos de madeira para queimar durante quatro horas, se fosse um carneiro de 27 kg. O nosso era menor e, na dúvida sobre a cubagem correta, quando a lenha alcançou a metade do buraco nossos cozinheiros atearam fogo e esperaram o braseiro se formar por cerca de três horas.
 
Ato contínuo, se readequou a carne no tacho, alternando-se com camadas de ingredientes. Primeiro uma camada de abobrinha e chuchu picados para soltar bastante água, sobrepondo-se a salmoura no final. Tomates, cebolas  e maçãs inteiros encerraram a arrumação. Além da tampa, a vedação do tacho se completou com papel alumínio.  De maneira que o tacho desceu às 10h40. No lugar de ganchos, fios amarrados às alças. Palha de bananeira, tábua e areia vedaram o buraco.

Hora de relaxar e lavar a goela. Tudo certo como a tampa e a panela. Apesar da alta umidade, uma garrafa de pinga Boazinha evaporou em instantes, caminho seguido por incontáveis garrafas geladérrimas de cerveja Antártica transportadas na motocicleta de Paulim de Zé Vermelho, diretamente do Emo’s Bar. O entrudo serviu para resgatar essa antiga e polêmica tradição de se molhar as pessoas durante o Carnaval, mesmo que fosse necessário destelhar casas, como fazia o delegado Valdemar Palha, em Boqueirão. Este escriba foi duplamente penalizado na brincadeira. Fui o primeiro a levar um balde d’água sobre meus poucos, mas heroicos cabelos da resistência. Depois quase perco a namorada, furiosa com o banho inesperado. 

Os Geniais — Como o amor é lindo e a vida é bela, a farra continuou. Para nossa sorte, Amilson Formigão passava férias em Gilbués com sua inseparável sanfona. Mais sorte ainda quando ele se juntou a Claudinho do Acordeon, amigo recém-chegado da Paraíba. Para atrapalhar mais e ajudar menos, fizemos um coro em torno dos dois músicos. Estes, sim, dedilharam bonito alguns clássicos de Luiz Gonzaga e Flávio José. Formigão, aliás, além de ter sido o primeiro a provar e aprovar o carneiro, ainda nos trouxe boas lembranças do tempo em que formou a banda “Os Geniais”, composta por ele na bateria, Nonatim na sanfona, Aldinante e Dadá nos vocais, Zomba no pandeiro. No final das décadas de 1970 e início de 1980, a banda se dividia em apresentações nos bares de Gilbués e Monte Alegre, entre eles o Bar Central, Te Contei e Pai Herói. O maior sucesso foi a música “Badalos”, que não saía da cantiga-de-grilo desse refrão: “É badalos, badalos, badalôs, é badalos, é badalos, badalôs...”.

Expectativa e apreensão se misturaram até o momento de retirarmos o tacho. E se o buraco abatesse? Afinal, a terra estava úmida. E se entrasse fumaça no tacho e tudo virasse um monte de carne moqueada? E se não houvesse saído água suficiente dos legumes? E se o carneiro estivesse frio de sal ou o contrário? Nada disso aconteceu. Quatro horas depois, o carneiro saiu ao ponto. Aprovação unânime. Apesar da dupla camada de papel alumínio sobre a carne, ainda penetrou um pouco de fumaça no tacho, deixando as primeiras porções com um leve sabor de defumado. Alguns comensais se empanturraram, é verdade. Mas nada que comprometesse o conjunto da obra. 

O sucesso do prato animou os organizadores a planejarem uma segunda edição em agosto, durante o Festejo de Nossa Senhora Divina Pastora. A intenção é ampliar para o formato de minifestival, com venda de camisetas e chope. Um dos organizadores, o grupo Pambulina vislumbra até a possibilidade de uma excursão ao Paraná, afim de aprimorar o conhecimento culinário no Festival Nacional do Carneiro no Buraco, realizado a cada mês de julho na cidade de Campo Mourão, quando são preparados cerca de 183 tachos. Pambulina vem das iniciais dos nomes de seus integrantes: Pam de Panzilão (Oliveira), bu de Bujão (Carlim de Jacó) e lina de Beijalina (Jalbas).

(*) – Jornalista concursado da Imprensa Nacional. Autor dos livros Cavouqueiro, Chegou hoje, quando volta? e (Quase) memória da linguagem piauiesa.



Tunda, Jalbas,Marcelo,Oliveira,Henrique,Carlin,Pedro Paulo e Peco




 

                                                                                   


Formigão, saboreando o carneiro

Nenhum comentário:

Postar um comentário